tudo começou pela internet. um like aqui, um comentário ali, rios de mensagens e muito interesse envolvido. ele estava viajando de férias, eu tava carente e teria a folga do trabalho bem no dia que ele voltava pra SP. fui buscá-lo no aeroporto e tudo parecia um conto de fadas. a primeira troca de olhares ainda foi de dentro do ônibus que leva até a plataforma do aeroporto, quando eu desci e o encontrei nos abraçamos e ele me girou no ar. parecia coisa de filme. parecia que nos conhecíamos há anos e que estávamos com aquela saudade gigante de tempos sem nos ver (tipo os caras que vão pro exército e a família filma a reação quando eles chegam). de fato estávamos há tempos sem nos ver, afinal era nosso primeiro encontro. beijos, carinhos, elogios, cheiros, trocas gostosas e assim foi por mais ou menos 1 ano.
nesse meio tempo decidimos morar juntos, foi meio que natural essa decisão, eu procurava outro apto e outro hoomie e ele também, decidimos nos unir nessa busca e estávamos bem felizes com essa conquista. mudamos. tudo lindo. perdi o emprego. fodeu. ele ficou responsável pelas contas mais pesadas e eu ficava em casa o dia todo pra cuidar da casa, de alguns trabalhos como freela que surgiam e, claro, cuidar dele. nunca cuidava de mim, não dava tempo, quando eu pensava em cuidar de mim tinha que ir pra faculdade e a correria era tanta que eu não me importava com as olheiras aparentes e os pensamentos cansados de faltar amor próprio.
a cervejinha depois da faculdade foi ficando cada vez mais rara, toda vez que eu parava pra conversar com algum amigo no bar que tinha do lado da faculdade parece que ele sentia e mandava várias mensagens questionando porque eu estava “atrasada pra chegar em casa”. eu não tenho o gênio muito fácil, sou mulher de opinião e sempre fui de fazer o que eu bem entendo, mas com ele era diferente, um “a” pronunciado torto era motivo de desespero interno: “será que o fiz mal?” “será que ele vai achar ruim?” “será que vai falar algo?” “será que vai brigar comigo? eu odeio brigar com ele! a gente é tão perfeito!”.
eu nunca vou esquecer o dia que implorei pra uma amiga ir pra casa comigo porque eu tinha ficado no bar depois da faculdade e mesmo avisando à ele que chegaria um pouco depois do horário normal porque estava no bar, estava com medo do que poderia acontecer. minha amiga presenciou uma das piores noites da minha vida, ele me empurrou, me apertou, gritava coisas horríveis me olhando nos olhos, gritou com a minha amiga, mandou ela ir embora, a deixou pra fora de casa enquanto descontava toda a sua raiva em mim. eu me tranquei no quarto porque não aguentava mais tanta dor física e emocional que aquela situação estava me causando na hora. ele arrombou a porta do quarto e continuou com as agressões físicas e os insultos. me tranquei no banheiro, liguei o chuveiro e chorei por mais de 2 horas seguidas. me culpei por toda água gasta, mas eu tinha fé que toda aquela água ia levar junto consigo toda a dor que eu sentia pro ralo. doce ilusão. esse surto passou, me culpei por tanta coisa, “eu não devia ter ido pro bar… pra que eu quero ir pro bar, gente? qual a necessidade de ir pro bar depois da faculdade?” esses foram os questionamentos na manhã seguinte. minha amiga, coitada, ficou atônita e tentou me alertar sobre o abuso, mas eu disse que ele era assim mesmo e que depois ficava tudo bem.
essa noite se repetiu por mais 2 anos e meio na minha vida e por motivos cada vez “menores”. uma ida a padaria era motivo para brigas e mais brigas. mudamos para uma outra casa maior, mais perto do centro e longe das pessoas que conhecíamos, eu já não tinha mais contato diário com a minha família. falava com a minha mãe umas 3 vezes no mês e olhe lá. também me afastei de praticamente todos os meus amigos, mas alguns poucos ficaram presentes da forma como conseguiram e me deram força, por mais que eu não conseguisse enxergar a gravidade do que eu estava vivendo. nessa casa nova precisava fazer as cópias das chaves pra mim e cada vez era uma desculpa diferente e totalmente arrogante. chegou no ponto que eu não tinha as chaves da minha própria casa, ele abria a porta e o portão pra eu sair e entrar, ou seja, eu só entrava e saia da minha própria casa com a autorização dele. para ir e voltar do trabalho ele me levava no ponto de ônibus “para cuidar de mim” já que morávamos em um bairro novo e não conhecíamos ninguém, e no outro bairro que conhecíamos eu fui assaltada 3 vezes na ida do metrô até em casa. eu via isso como cuidado. mas isso não era cuidado. isso era controle. abuso. se um assaltante quer te assaltar, ele vai fazer isso independentemente se você esteja acompanhada ou não.
enfim, foi ficando cada vez mais difícil engolir as desculpas de cuidado comigo que ele dava quando eu o questionava sobre suas atitudes. “eu faço tudo por você! você é tudo o que eu tenho aqui, quero o seu bem por isso faço isso.” foi ficando cada vez mais dolorido os empurrões, os apertões no braço e cada palavra feia que saia da boca dele nas brigas. eu, que sempre fui feminista, de repente me vi presa em um relacionamento abusivo e simplesmente não conseguia aceitar isso. “isso não acontece com feministas” era o pensamento dessa tola de 23 anos.
uma outra amiga, que teve uma importância gigante na minha vida nessa época, se expressava através de poesias e eu sempre a apoiei muito nessa trilha, certo 8 de março me presenteou com uma de suas criações que dizia “moça, você é poesia demais para que te coloquem pontos finais.” quando eu li achei linda a frase, mas não identifiquei o relacionamento abusivo, identifiquei o trabalho e até ao amor próprio que faltava em mim, mas o relacionamento abusivo não passou pela minha cabeça. hoje vejo o quão explícito tava esse recado na minha cara: “ele te coloca pontos finais, moça. ACORDE, MOÇA!” nesse mesmo 8 de março cheguei em casa com a poesia e uma rosa amarela, estava feliz pela rosa, foi a primeira flor que ganhei em toda minha vida de outra pessoa. foi o dono da agência que deixou em cima da mesa de cada funcionária. um gesto gentil que me causou mais uma noite noite de choro embaixo do chuveiro. “ele quer é te comer, por isso te deu essa flor. você acha que homem é gentil assim? sem interesse nenhum? é ruim em. mas também olha como você vai trabalhar…”
mais dores, mais noites acordadas, mais tormentas, mais crises de ansiedade afloradas, mais pensamentos suicidas, mais e mais e mais medo do que podia acontecer se escolhesse ser eu mesma e dissesse SIM para as minhas próprias vontades.
em uma tarde de muito trabalho essa minha amiga me convidou pra ir em um show no sesc perto de casa e o primeiro pensamento foi “só vou se ele for” e eu falei isso pra ela, eu jurava que ele ia, O Rappa era uma das bandas favoritas dele e era de graça! do ladinho de casa! cheguei em casa e o convidei com muita empolgação, ele disse que não estava a fim de ir, que não queria sair. eu reclamei porque a gente nunca mais tinha dado um passeio, nunca mais saíamos de casa juntos a não ser pra ir no ponto de ônibus… vieram respostas severas diretamente na minha cara… “eu tenho que trabalhar duro pra poder manter essa sua vida boa, temos dois gatos pra cuidar, se não sou eu trabalhar nada disso aqui acontece.” mas peraí eu também trabalhava, eu também pagava contas e quando eu chegava do trabalho eu tinha jornada dupla de mãe de gato, cozinhar a janta, cuidar dele, fazer os freelas… todos esses pensamentos vieram a tona nesse mesmo instante e eu respondi “pois eu vou ao show.”
chegou o sábado do show. foi dia 3 de abril, eu sou péssima com datas, mas essa eu nunca vou esquecer. acordei e me arrumei. “onde você pensa que vai?” retruquei “ué, vou no show dO Rappa, já tinha dito isso pra você essa semana. Vamos juntos, vai ser legal!”. fechou a cara. terminei de me arrumar e pedi pra me levar no ponto pra eu ir pro show de ônibus, ele recusou, mas abriu o portão pra mim sair. o show foi incrível, tive companhias maravilhosas, fui eu mesma como há muito tempo eu não podia ser. a mãe da minha amiga foi com a gente e comentou “você não merece viver presa assim, pensa direitinho se é o que você quer pra sua vida, minha filha. Tão jovem, tão bonita. Vive mais sua vida.” Eu também nunca vou esquecer essas palavras vindas com um olhar de ternura de mãe, olhar que eu não sabia o que era há quase 4 anos porque eu simplesmente não falava com a minha mãe, sendo que ela sempre esteve ali comigo.
no sesc itaquera tem uns lugares que não pega o sinal do celular e foi bem nesse lugar que foi o show. fiquei apreensiva porque ele podia querer falar comigo e eu não conseguir atender por falta de sinal, mas minha amiga me tranquilizou “amiga, você avisou a ele que estaria comigo e com a minha família, aproveita essa tempo pra você agora”. eu segui seu conselho e pela primeira vez, depois de muito tempo, eu vivi conforme as minhas vontades. depois do show a família me convidou para jantar e chegando na casa deles o pai da minha amiga disse que “o seu marido ligou aqui atrás de você e ele parecia que tava meio bravo. acho que é melhor você ir pra casa” o olhar de socorro que lancei pra minha amiga e pra mãe dela foi assustador. tudo o que eu queria era dormir ali, segura, longe dele. eu não queria mais uma noite chorando debaixo do chuveiro, porque dessa vez eu sabia que as águas não iam levar consigo as minhas dores pro ralo.
a família me levou pra casa, era pertinho. cheguei, ele abriu o portão e nem oi me deu. ao entrar em casa tive que ouvir que “eu só abri o portão pra você, porque eles vieram te trazer, senão você ia ficar na rua. não é na rua que você gosta de ficar? então.” eu não respondi, já estava chorando desde o portão, eu já sabia o que me esperava. mais uma chuva de dores veio em forma de palavras “você tá chorando porque sabe que tá errada. eu fiquei aqui o dia todo trabalhando e você na rua vagabundeando com as suas amiguinhas. ai chega em casa e chora.” eu já não aguentava mais, essa acusação dele por minhas lágrimas foi a gota d’água.
então eu levantei meus olhos, olhei dentro dos olhos dele e berrei “CHEGA! EU NÃO AGUENTO MAIS! ACABOU, (nome dele completo)!” ele ficou paralisado. eu nunca tinha reagido a nenhuma de suas acusações. dessa vez eu reagi e foi a minha vez de colocar o ponto final. a partir daquele momento eu não pertencia mais a ninguém a não ser a mim mesma. eu desconheço a força que me preencheu pra que eu tivesse essa postura. eu não me reconhecia de tão forte que eu estava. ele começou a chorar e falar “você não pode fazer isso comigo! eu te amo! você é tudo o que eu tenho! eu vivo a minha vida por você! não me deixe!” e tantas outras coisas eu não o respondi, apenas fui tomar um banho aliviada por lavar meu corpo e não mais meus olhos de dentro pra fora naquela mesma esperança que era nula.
eu estava livre, mas havia a manhã seguinte. eu não sabia o que ele era capaz de fazer. dormimos separados, eu no quarto e ele na sala. era domingo e eu não ia aguentar passar o dia inteiro no mesmo lugar que ele, primeiro por medo do que podia acontecer e segundo por medo de voltar com ele. foi muito difícil dormir, fiquei remoendo e pensando várias coisas que eu precisava fazer depois daquela decisão, eu precisava de um apartamento, eu precisava de dinheiro, eu precisava sair dali. então me arrumei e fui sair com a minha amiga, precisava sair. foi libertador sair.
o pós dessa história não foi fácil, ele me acusou de traição, me acusou de várias coisas, inclusive de ter sido abusiva com ele por ter ciúmes. com muito custo, eu ignorei todas as acusações e deixei o tempo me mostrar que aquelas pedras todas que ele jogou contra mim não eram reais. a família dele ficou toda contra mim, enquanto eu precisei voltar aos braços da minha família que sempre esteve disposta e pronta a me ajudar no que eu precisasse. ainda vivi com ele na mesma casa por 1 mês, encontrei um apartamento longe dali e fui recomeçar a minha vida.
recomeçar mesmo, do zero.
hoje, 4 anos e 3 meses, do último dia de prisão da minha vida eu fui capaz de escrever sobre tudo o que passei. Enxergar e externar tudo o que estava guardado aqui dentro sobre aquela fase difícil da minha vida. eu não me vejo e nem me coloco como vítima, mas posso dizer que foi muito difícil passar por tudo e pior ainda foram os traumas, as manias e tudo o que carreguei depois. Ressignificar esse relacionamento foi uma das coisas que eu mais trabalhei durante esses 4 anos, mas nunca tinha tido coragem de escrever abertamente sobre tudo. parar para pensar, escrever, pontuar, lembrar nitidamente de cada frase, dor, toque.
posso dizer que a partir de agora estou recolocando o ponto final.
“moça, você é poesia demais para que te coloquem pontos finais.” #mdm
.RSRC.
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